sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Resenha Critica a exposição Manifesto, poder, desejo, intervenção

Althusser encontra-se obsoleto. Se nos anos 60, sua critica feroz acerca dos aparelhos repressivos de Estado foi o solo para o que hoje corresponde à nomenclatura de Critica Institucional, sendo assim as bases para desvincular as práticas artísticas da dependência das instituições, nos dias atuais nos deparamos com a incorporação total de tudo que se move “radicalmente” na arte pelas estruturas de poder, sejam elas estatais ou corporativas de mercado. Afinal, tanto os dispositivos de controle modernos como o Estado ou a sujeição da vida ao sistema capitalista, são as esponjas que sugam toda vitalidade produzida pelas novas formas de percepção do real, tardiamente florescidas nos trópicos após a finalização das Ditaduras Militares no Cone Sul.

Em cartaz no MARGS a exposição, Manifesto, poder, desejo, intervenção traz como tema principal a experiência estética como relevante e essencialmente política; apoiado em um dos nomes mais hypes da intelectualidade francesa, Jacques Rancière, o texto de divulgação ressalta a importância de entendermos a arte enquanto produção de diferença para uma melhor compreensão do mundo.
Atualmente uma análise macro estrutural é insuficiente para compressão da complexidade política que vivemos, é certo que nesse ponto as concepções de Althusser deixam a desejar, ou melhor, esqueceram de ativar o desejo como mola propulsora do sistema capitalista, incapaz assim de uma atualização da noção de estrutura como mera abstração, a qual nos indica que caminhos traçados a priori antes mesmo de nascer, “escolheremos” seguir. Se as estruturas não são fixas, a identidade também,  deixou de ser o confortável núcleo duro do sujeito, como bem lembra Foucault: “Não nascemos sujeito, tornamo-nos um”. De certa forma algumas desestabilizações como essa ajudaram a compor um novo campo de oferta para a arte contemporânea. Hall Foster em Pós-Crítica¹, alerta sobre o que restaria no atual contexto da arte se não o apelativo clichê a contemplação da beleza, a afirmação do afeto, a “redistribuição do sensível” ou a confiança no intelecto geral. Para Foster, a condição pós-crítica supostamente nos libertaria de nossas camisas de força, as estruturais como citei (históricas, teóricas e políticas), porém de modo geral, incentiva um relativismo que tem pouco a ver com o tão aclamado pluralismo – reverberação atual mal digerida da influência dos Estudos Culturais que tanto consumiu o outro numa relação de alteridade perversa.

 Manifesto, poder, desejo, intervenção é uma gafe, uma das piores de 2014. É certo que a arte deixou de ser descrita em termos espaciais, como estúdios, galerias e museus, e sua rede discursiva abrange hoje diferentes formas de estar e compor os mundos que lhe perpassa, ou como a encontrar, extrapolando o sujeito, suprimindo o objeto e até mesmo desmaterializando-o, como cita Lucy Lippard em Seis años: La desmaterialización del objeto artístico de 1966 a 1972 (2004). No entanto, esse terreno relativista de status quo com ares pra lá de pós-modernos explicita não apenas o apagamento da critica devido ao fato de uma boa parcela da arte estar entregue nas mãos de agenciamentos corporativos da indústria ou das migalhas estatais, mas se apropria descaradamente de políticas fora do establishment para suprir uma necessidade da Cultura², em reter subjetivamente as forças autônomas de produção de realidade fora da mesma. A exposição em questão, talvez nem mesmo mereça tal observação, acredito que quando falamos desde a Sudakalândia³, as questões podem ser outras.   

Em o Artista como Etnógrafo 4, Hall Foster aponta que a onda de artistas interessados “no outro”, esse, cultural, subdesenvolvido, oprimido e pós-colonial doente e sofredor ao tratar desses espaços e de suas condições políticas, econômicas e socioculturais como lugares de trabalho invertem as posições, onde os artistas assumem o lugar de fala do outro, em uma espécie de militância orgânica, associando-se a ele visando obter acesso a “alteridades transformadoras”. O problema que essa relação origina, é o fato de que este outro estaria imerso somente na realidade do mundo que o cerca, ou apenas abaixo aquilo que o discurso (linguagem) projeta sobre seu entorno e si mesmo. O artista é o intruso que invade o outro projetando sobre ele uma inatividade, quase que obrigatoriamente entregue a um “destino” triste. Em busca de reconhecimento, o artista contemporâneo não se vê capaz de criar outras formas de se fazer arte, seguindo então as demandas de circuitos da arte especializados no consumo da pobreza. Esse tipo específico de artista é a peça chave para a manutenção do estereotipo do exótico derrotado terceiro-mundista para contemplação da retina, de um público no Cubo Branco. A obra de Xadalu SOS Guarani Kaiowa é uma violência simbólica sobre comunidades indígenas, na medida em que as representam por um “banner” com fotografias de índios chorando. Criticas apontadas já desde o início dos anos 2000, como no artigo Corpo Colonizado, publicado na revista Gesto nº 2 de 2003, de autoria de Andre Lepecki, então professor de Performance Studies na Universidade de Nova York, questionam esse tipo de apropriação revelando uma trama de oportunismo no discurso: 

A pós-colonialidade aparece no discurso da crítica cultural ao mesmo tempo que outros qualificativos mais em voga (e normalmente vistos como mais positivos) no mercado cultural: o multi-culturalismo, o híbrido (cultural), a miscigenação (de culturas), etc. A distinção que faço entre pós-colonialidade e os restantes termos é a seguinte: a pós-colonialidade descreve uma hipotética transformação social resultante do desmoronamento dos impérios Europeus nos anos 50 e 60 (o último desses impérios sendo o português, que desaba em 1975 depois da Revolução dos Cravos). Assim, a pós-colonialidade (ou o pós-colonialismo) precede e permite a utilização dos outros termos (multiculturalismo, etc.) que seriam os nomes simpáticos que descrevem a entrada do corpo do ex-colonizado num sistema global de imagens, sons, peles e gostos onde o ocidental se redime do seu passado por via de uma “celebração” da “cultura” do até ontem colonizado.”

Se invertermos o mapa, os países latinos não seriam mais os últimos da América, mas os primeiros, e os países do Norte abaixo do continente Africano estariam. É pela imagem que recai sobre nós, que traçamos nossos caminhos. Não é uma questão simples a inversão, mas pode ser uma estratégia ousar explicitá-la enquanto possibilidade decolonizadora. É uma questão imagética essa que cria a necessidade de “se estão falando disso lá em cima temos que fazer aqui também”. É nesse ponto que reside uma falha de Manifesto, poder, desejo, intervenção, pois segue a demarche do momento (porém já nascendo desatualizada). O lobby político nesse caso serve apenas como atualização do que se esta em voga para realizar-se.  Desse modo, fica o público a mercê de subjetividades já mastigadas pelas curadorias, e a ilusão do “espectador emancipado” de Ranciére, que indiretamente é convocada por essa exposição, na ilusão que ao “ver estaria se vendo”, entregue a um jogo corporativo do Estado já obsoleto, porém realizado constantemente.
A "redistribuição do sensível" em  Jacques Rancière é uma panacéia e quando contraposta a transformação de coisas em signos, promovida pelo capitalismo, pouco mais do que um anseio; é o novo ópio ao mundo da arte. Encontramos ai um outro  lugar para compor uma linha de fuga, o das celebrações da beleza, das políticas do desejo e principalmente do desgastante clamor ao afeto. As representações de Queer, Feminismo, e políticas radicais, trazidas pela exposição, revelam o quão distantes dessas realidades esses artistas estão, , pois como manetas, respondem a uma demanda puramente oca de “arte política”, produzindo temas “singulares” porém sem singularidade. – obras vazias, produzidas por artistas vazios. Um esvaziamento típico daquilo que a pós- modernidade tem de pior: falamos do que não vivemos, e partilhamos ou “produzimos” com os restos da projeção superficial da imagem que quase tocamos. Ou seja, retira-se a substância de sua realidade política, entregando-a ao corporativismo paternalista do Estado. 

Como lembrou Hall Foster em O artista como Etnógrafo, quantas vezes já não nos deparamos com o clichê do artista nômade? Podemos nos perguntar, se esse tráfego de objetos-imagens é suficientemente corajoso a ponto de desestabilizar as realidades, como fizeram os mesmos, fora das galerias e da neo contemplação artistóide que o Estado agencia? 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Pós-Critica¹, Foster, Hall. Pós-Crítica, in Arte & Ensaios nº 2012. Rio de Janeiro: PPG Artes Visuais EBA/UFRJ, 2005

Cultura², Ver: GUATTARI; ROLNIK. Micropolítica cartografias do desejo

Sudakalândia³, Termo pejorativo utilizado na Europa para tratar imigrantes do Cone Sul – utilizado no texto performaticamente de modo positivo.

Artista como Etnógrafo 4: Foster, Hall, in Arte & Ensaios nº 25. Rio de Janeiro: PPG Artes Visuais EBA/UFRJ, 2013










































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