Althusser
encontra-se obsoleto. Se nos anos 60, sua critica feroz acerca dos
aparelhos repressivos de Estado foi o solo para o que hoje corresponde à
nomenclatura de Critica Institucional, sendo assim as bases para desvincular as
práticas artísticas da dependência das instituições, nos dias atuais nos
deparamos com a incorporação total de tudo que se move “radicalmente” na arte
pelas estruturas de poder, sejam elas estatais ou corporativas de mercado.
Afinal, tanto os dispositivos de controle modernos como o Estado ou a sujeição
da vida ao sistema capitalista, são as esponjas que sugam toda vitalidade
produzida pelas novas formas de percepção do real, tardiamente florescidas nos
trópicos após a finalização das Ditaduras Militares no Cone Sul.
Em cartaz no MARGS a exposição, Manifesto, poder, desejo, intervenção traz
como tema principal a experiência estética como relevante e essencialmente
política; apoiado em um dos nomes mais
hypes da intelectualidade francesa, Jacques Rancière, o texto de divulgação
ressalta a importância de entendermos a arte enquanto produção de diferença
para uma melhor compreensão do mundo.
Atualmente uma análise macro
estrutural é insuficiente para compressão da complexidade política que vivemos,
é certo que nesse ponto as concepções de Althusser deixam a desejar, ou melhor,
esqueceram de ativar o desejo como mola propulsora do sistema capitalista,
incapaz assim de uma atualização da noção de estrutura como mera abstração, a
qual nos indica que caminhos traçados a
priori antes mesmo de nascer, “escolheremos” seguir. Se as estruturas não
são fixas, a identidade também, deixou de ser o confortável núcleo duro do
sujeito, como bem lembra Foucault: “Não
nascemos sujeito, tornamo-nos um”. De certa forma algumas desestabilizações
como essa
ajudaram a compor um novo campo de oferta
para a arte contemporânea. Hall Foster em Pós-Crítica¹, alerta sobre o que restaria no
atual contexto da arte se não o apelativo clichê a contemplação da beleza, a
afirmação do afeto, a “redistribuição do sensível” ou a confiança no intelecto
geral. Para Foster, a condição pós-crítica supostamente nos libertaria de
nossas camisas de força, as estruturais como citei (históricas, teóricas e
políticas), porém de modo geral, incentiva um relativismo que tem pouco a ver
com o tão aclamado pluralismo – reverberação atual mal digerida da influência
dos Estudos Culturais que tanto
consumiu o outro numa relação de alteridade perversa.
Manifesto,
poder, desejo, intervenção é uma gafe, uma das piores de 2014. É certo que a arte deixou de ser
descrita em termos espaciais, como estúdios, galerias e museus, e sua rede
discursiva abrange hoje diferentes formas de estar e compor os mundos que lhe
perpassa, ou como a encontrar,
extrapolando o sujeito, suprimindo o objeto e até mesmo desmaterializando-o,
como cita Lucy Lippard em Seis años: La desmaterialización del objeto artístico de 1966 a 1972
(2004). No entanto, esse terreno relativista de status quo com ares pra lá de pós-modernos explicita não apenas o
apagamento da critica devido ao fato de uma boa parcela da arte estar entregue
nas mãos de agenciamentos corporativos da indústria ou das migalhas estatais,
mas se apropria descaradamente de políticas fora do establishment para suprir uma necessidade da Cultura², em reter subjetivamente as forças
autônomas de produção de realidade fora da mesma. A exposição em questão,
talvez nem mesmo mereça tal observação, acredito que quando falamos desde a Sudakalândia³, as
questões podem ser outras.
Em o Artista como Etnógrafo 4, Hall Foster aponta que a onda de artistas interessados “no outro”, esse, cultural, subdesenvolvido,
oprimido e pós-colonial doente e sofredor ao tratar desses espaços e de suas
condições políticas, econômicas e socioculturais como lugares de trabalho
invertem as posições, onde os artistas assumem o lugar de fala do outro, em uma
espécie de militância orgânica, associando-se
a ele visando obter acesso a “alteridades transformadoras”. O problema que essa
relação origina, é o fato de que este outro estaria imerso somente na realidade
do mundo que o cerca, ou apenas abaixo aquilo que o discurso (linguagem)
projeta sobre seu entorno e si mesmo. O artista é o intruso que invade o outro
projetando sobre ele uma inatividade, quase que obrigatoriamente entregue a um “destino”
triste. Em busca de reconhecimento, o artista contemporâneo não se vê capaz de
criar outras formas de se fazer arte, seguindo então as demandas de circuitos
da arte especializados no consumo da pobreza. Esse tipo específico de artista é
a peça chave para a manutenção do estereotipo do exótico derrotado terceiro-mundista
para contemplação da retina, de um público no Cubo Branco. A obra de Xadalu SOS Guarani Kaiowa é uma violência
simbólica sobre comunidades indígenas, na medida em que as representam por um
“banner” com fotografias de índios chorando. Criticas apontadas já desde o
início dos anos 2000, como no artigo Corpo
Colonizado, publicado na revista Gesto nº 2 de 2003, de autoria de Andre
Lepecki, então professor de Performance Studies na
Universidade de Nova York, questionam esse tipo de apropriação revelando uma
trama de oportunismo no discurso:
A pós-colonialidade aparece
no discurso da crítica cultural ao mesmo tempo que outros qualificativos mais
em voga (e normalmente vistos como mais positivos) no mercado cultural: o
multi-culturalismo, o híbrido (cultural), a miscigenação (de culturas), etc. A
distinção que faço entre pós-colonialidade e os restantes termos é a seguinte:
a pós-colonialidade descreve uma hipotética transformação social resultante do
desmoronamento dos impérios Europeus nos anos 50 e 60 (o último desses impérios
sendo o português, que desaba em 1975 depois da Revolução dos Cravos). Assim, a
pós-colonialidade (ou o pós-colonialismo) precede e permite a utilização dos
outros termos (multiculturalismo, etc.) que seriam os nomes simpáticos que
descrevem a entrada do corpo do ex-colonizado num sistema global de imagens,
sons, peles e gostos onde o ocidental se redime do seu passado por via de uma
“celebração” da “cultura” do até ontem colonizado.”
Se invertermos o mapa, os países latinos não seriam mais os últimos da
América, mas os primeiros, e os países do Norte abaixo do continente Africano
estariam. É pela imagem que recai sobre nós, que traçamos nossos caminhos. Não
é uma questão simples a inversão, mas
pode ser uma estratégia ousar explicitá-la enquanto possibilidade
decolonizadora. É uma questão imagética essa que cria a necessidade de “se
estão falando disso lá em cima temos que fazer aqui também”. É nesse ponto que
reside uma falha de Manifesto,
poder, desejo, intervenção, pois segue a demarche do momento (porém já nascendo desatualizada). O lobby
político nesse caso serve apenas como atualização do que se esta em voga para
realizar-se. Desse modo, fica o público
a mercê de subjetividades já mastigadas pelas curadorias, e a ilusão do
“espectador emancipado” de Ranciére, que indiretamente é convocada por essa exposição,
na ilusão que ao “ver estaria se vendo”, entregue a um jogo corporativo do
Estado já obsoleto, porém realizado constantemente.
A "redistribuição do
sensível" em Jacques Rancière é uma panacéia e quando contraposta a
transformação de coisas em signos, promovida pelo capitalismo, pouco mais do
que um anseio; é o novo ópio ao mundo da arte. Encontramos ai um outro lugar para compor uma linha de fuga, o das celebrações da beleza, das políticas do desejo
e principalmente do desgastante clamor ao afeto. As representações de Queer, Feminismo, e políticas radicais,
trazidas pela exposição, revelam o quão distantes dessas realidades esses
artistas estão, , pois como manetas, respondem a uma
demanda puramente oca de “arte política”, produzindo temas “singulares” porém
sem singularidade. – obras vazias, produzidas por artistas vazios. Um
esvaziamento típico daquilo que a pós- modernidade tem de pior: falamos do que
não vivemos, e partilhamos ou “produzimos” com os restos da projeção superficial
da imagem que quase tocamos. Ou seja,
retira-se a substância de sua realidade política, entregando-a ao
corporativismo paternalista do Estado.
Como lembrou Hall Foster em O artista como Etnógrafo, quantas vezes
já não nos deparamos com o clichê do artista nômade? Podemos nos perguntar, se esse tráfego de objetos-imagens é
suficientemente corajoso a ponto de desestabilizar as realidades, como fizeram
os mesmos, fora das galerias e da neo contemplação artistóide que o Estado
agencia?
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Pós-Critica¹,
Foster, Hall. Pós-Crítica, in Arte & Ensaios nº 2012. Rio de Janeiro: PPG Artes
Visuais EBA/UFRJ, 2005
Cultura²,
Ver: GUATTARI; ROLNIK. Micropolítica cartografias
do desejo
Sudakalândia³,
Termo pejorativo utilizado na Europa para tratar imigrantes do Cone Sul –
utilizado no texto performaticamente de modo positivo.
Artista como Etnógrafo 4: Foster,
Hall, in Arte & Ensaios nº 25. Rio de Janeiro: PPG Artes Visuais EBA/UFRJ, 2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário